Em artigo publicado nesta segunda-feira, 16, um grupo de pesquisadores demonstra o potencial de dois medicamentos utilizados para gripe no tratamento de casos graves de Covid-19: o Oseltamivir (mais conhecido pelo nome comercial Tamiflu) e o Zanamivir.
Apesar de não terem sido realizados testes com pacientes, o trabalho é promissor ao identificar, a partir de experimentos com camundongos e células de pessoas infectadas, que os dois fármacos são capazes de reduzir a resposta inflamatória generalizada que leva à lesão de tecidos e órgãos, além de terem diminuído a mortalidade entre os animais analisados.
O estudo foi desenvolvido no Laboratório de Imnobiologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e contou com a participação de cientistas da Universidade de São Paulo (USP), do Hospital Naval Marcílio Dias, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de Alberta, no Canadá.
O Oseltamivir e o Zanamivir atuam na inibição de uma família de enzimas chamada neuraminidase, que está presente em diversas células de uma variedade de organismos. Em casos de infecção, essas enzimas degradam o ácido siálico (um tipo de açúcar presente na membrana das células), levando à ativação dos neutrófilos – um dos subtipos de leucócitos que fazem parte de nosso sistema imunológico.
O problema é que, em algumas situações, há uma ativação exagerada do sistema imunológico, e os neutrófilos, além de atacarem o foco da infecção, lesionam também células saudáveis. É o que se observa nos casos mais graves de Covid-19: na tentativa de proteger o corpo do coronavírus, os neutrófilos podem levar até mesmo ao comprometimento de órgãos, como o pulmão. E a neuraminidase tem um papel crucial nessa história.
“Numa infecção que não seja grave, os neutrófilos vão para o foco da infecção, combatem a bactéria ou o vírus e não vão para os outros tecidos. Então, eles vão para o lugar certo, combatem a infecção, e o paciente melhora. Mas, numa situação de infecção grave, o organismo tenta produzir uma resposta para combater aquela infecção, só que essa resposta é tão exacerbada que o organismo perde o controle da resposta imune. Então, esse neutrófilo deixa de ir para o foco da infecção e passa a migrar para outros tecidos, como os pulmões, coração e fígado. E, como ele está superativado, acaba lesionando esses tecidos”, explica Fernando Spiller, professor do Departamento de Farmacologia da UFSC e coordenador do estudo.
Já para os experimentos com camundongos, os cientistas utilizaram bactérias para induzir uma infecção generalizada nos animais – a sepse. “Como o vírus da Covid-19, o SARS-CoV-2, não infecta camundongos, porque falta neles a proteína que nós humanos temos, o ACE2, mesmo que você injete o vírus no camundongo, ele não fica doente. Então, é preciso usar outros modelos”, comenta o professor. “O que a gente viu foi que esses dois inibidores, que foram primeiramente desenhados para inibir a neuraminidase de vírus, também inibem a neuraminidase de mamíferos, tanto de camundongos como de humanos”, relata o pesquisador.
Os testes realizados com células retiradas de pacientes com Covid-19 grave demonstraram que, ao bloquearem a ativação da enzima, os medicamentos permitem que os ácidos siálicos da membrana dos neutrófilos sejam restaurados e que seja revertida a ativação dessas células – e, por consequência, aquela resposta exacerbada do sistema imunológico. Ou seja, os fármacos ajudam a regular a ação dos neutrófilos, o direcionam “para o lugar certo, que é o foco da infecção”, esclarece Spiller.
Os animais tratados com os medicamentos tiveram menos lesões nos tecidos, menor resposta inflamatória e também maior taxa de sobrevivência do que os que não receberam qualquer tratamento. Em um dos modelos testados, o uso do Oseltamivir combinado com antibióticos aumentou a taxa de sobrevivência dos camundongos com sepse de 25% (resultado observado no grupo controle) para 87,5%.
Conforme atenta Spiller, ainda são necessários testes clínicos (com pacientes) para confirmar a eficácia desses medicamentos para o tratamento da Covid-19, mas os resultados são promissores: “Como são fármacos que já estão em uso entre humanos, dos quais já se conhece os efeitos adversos e tóxicos, existe um grande potencial para se redirecionar esses medicamentos para outras doenças, tanto para sepse de diferentes origens – seja por fungo, bactéria ou por vírus – como também para o tratamento da Covid-19”.
Inclusive, um estudo desenvolvido na China, que analisou retrospectivamente os dados de 1.190 pessoas com Covid-19 na cidade de Wuhan, mostrou que o uso de Oseltamivir por pacientes com o estado grave da doença estava relacionado a um menor risco de morte. Há, ainda, estudos clínicos em andamento na Europa e nos Estados Unidos que avaliam a eficácia do Oseltamivir para o tratamento da Covid-19.
Atualmente, o grupo de Spiller está em busca de financiamento para poder iniciar os testes com pacientes. Paralelamente, os pesquisadores pretendem continuar estudando os mecanismos pelos quais a neuraminidase é ativada nas células e identificar os subtipos da enzima envolvidos nos processos de infecção.