A cada dia, 200 casos de violência contra a mulher foram registrados nos últimos 5 anos em SC

Era madrugada do dia 12 de maio de 2024, no final de semana do Dia das Mães. Camila* estava dormindo em um apartamento no bairro Ingleses, no Norte de Florianópolis, onde passava férias, quando foi puxada pelos pés, jogada no chão, enforcada e atingida por incontáveis socos no rosto pelo então namorado. O episódio de violência vivido naquela noite foi o primeiro de uma série de agressões enfrentadas pela psicóloga ao longo de nove meses: “ele teve oito chances de me matar”, diz.

A jovem faz parte de uma triste estatística estadual. Somente em Santa Catarina, entre janeiro de 2020 e junho de 2025, foram registrados 401.015 crimes de violência doméstica contra a mulher, segundo dados do Observatório da Violência Contra Mulher (OVM). Os números mostram que, em média, 200 crimes deste tipo foram registrados por dia no Estado durante o período. Os dados englobam violência física, psicológica e moral, todas definidas pela Lei Maria da Penha, sancionada há 19 anos, como formas de violência de gênero.

Assim como Camila*, Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de violência doméstica praticada pelo marido durante décadas. Em 1983, a farmacêutica cearense foi atingida por um tiro nas costas enquanto dormia, o que a deixou paraplégica. Quatro meses depois, quando voltou para casa, após duas cirurgias, internações e tratamentos, o agressor a manteve em cárcere privado durante 15 dias e tentou eletrocutá-la durante o banho. O homem foi condenado em 1991, somente oito anos após os crimes. Ele foi sentenciado a 15 anos de prisão, mas, devido a recursos solicitados pela defesa, saiu do fórum em liberdade.

O caso de Maria da Penha foi parar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA,  em 1998, que julgou o estado brasileiro como omisso, negligente e tolerante com a violência contra a mulher. Foi a primeira vez que o Brasil foi condenado internacionalmente por violação de direitos humanos nesse contexto. Como resposta à condenação e à pressão dos movimentos de mulheres, o governo elaborou um projeto de lei, que foi redigido por um grupo de juristas, especialistas e representantes de movimentos sociais.

No dia 7 de agosto de 2006 a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, foi sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A legislação classifica violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou “omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. O texto ainda define a criação de delegacias da mulher, centros de acolhimento, casas abrigo, além de garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

Beneficiada pela Lei Maria da Penha, Camila* conseguiu uma medida protetiva contra o seu agressor no mesmo dia em que foi agredida pela primeira vez. Natural de São Paulo, ela retornou para casa, mas precisou se mudar três vezes para não ser encontrada pelo ex-namorado:

— Na terceira eu acabei voltando com ele. Nesse vai e volta, foram oito boletins de ocorrências. Ele teve oito chances de me matar. Ele foi preso no dia 17 de fevereiro deste ano. Eu já não estava mais com ele, mas ele me seguia. Dois dias antes, no dia 14, ele me pegou na rua e me bateu porque não aceitava o fim do relacionamento. Só que nos primeiros meses, ele era um príncipe, aquele que você fala: “não sabia que existia. Nunca tive um assim”.

A psicóloga precisou mudar de estado com medo de ser encontrada pelo agressor, que responde em liberdade. Mãe de dois filhos, frutos de outros relacionamentos, ela conta que sente falta de casa, mas tenta se organizar financeiramente e mentalmente, além de seguir na busca por justiça.

— Eu me arrumava toda, eu vivia maquiada. Estou voltando, já conseguindo. O cabelo está crescendo agora, consegui fazer luzes, fui na academia, voltei a me cuidar, mas tem horas que eu não consigo sair da cama. […] Eu me pergunto como fazer para resolver tudo isso? Enquanto ele está indo para todo lado, eu estou chorando aqui, tentando organizar minha vida.

Violências que não deixam marcas físicas lideram em SC 

Aos 31 anos, Kristel Aurora atuava como advogada em Lima, no Peru, sua cidade natal. Com um dos cargos mais altos da empresa, ela aparecia na televisão para dar entrevistas, era reconhecida na rua e guardava dinheiro para viajar pelo mundo. Com o sonho de poder viver com a própria companhia, ela não pensava em casar, mas desejava ser mãe. Em 2021, tudo mudou. Naquele ano, ela se mudou para Florianópolis para ajudar o irmão a cuidar do sobrinho, diagnosticado com câncer. Um dia, quando foi a um bar, acabou conhecendo o homem que seria o seu marido em poucos meses.

— Passaram cinco meses [desde o início do relacionamento] e ele me pediu em casamento porque ele não queria que eu voltasse [para o Peru]. Essa era a primeira bandeira vermelha, que não tinha como eu saber. As coisas foram muito rápidas — conta.

O homem, que trabalhava como garçom nos bares da Capital e já era pai de uma criança, começou a pedir ajuda financeira. Primeiro, pediu dinheiro à esposa para comprar um carro, que seria colocado no nome dele. Na sequência, pediu para que ela arcasse com a pensão alimentícia da filha, com o argumento que não tinha dinheiro para pagar. Com o tempo, começou a fazer ameaças para que a esposa desse todas as senhas dos bancos e de cartões de créditos. Quando conseguiu, passou a trancá-la dentro de casa para sair com o dinheiro dela. Kristel viu aos poucos a vida financeira afundar. Essa foi a primeira de uma sequência de violências vivenciada pela advogada ao longo de quase dois anos.

A violência patrimonial é um dos crimes previstos na Lei Maria da Penha. Segundo o texto, o ato é entendido como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total dos objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Em Santa Catarina, os órgãos de segurança não possuem dados sobre esse tipo de crime.

O enfrentamento das violências para além das agressões físicas e sexuais é o grande desafio da lei, de acordo com a juíza Naiara Brancher, titular do Juizado da Violência Doméstica e Familiar da Capital e Coordenadora Adjunta da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica (Cevid).

— Nós, enquanto sociedade, não estamos acostumados a reconhecer a violência se ela não está materializada em um olho roxo, se ela não está transformada numa agressão física. O trabalho é fundamental para que a gente reconheça as outras violências — argumenta.

Além da violência patrimonial, a psicológica é outro tipo de agressão que não deixa marcas. Um exemplo é a ameaça, um dos crimes mais registrados pelo painel do Observatório da Violência Contra Mulher em Santa Catarina (OVM), com 190.153 casos entre 2020 e junho de 2025. De acordo com o Anuário de Segurança, divulgado em julho pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com base nos dados de 2024, Santa Catarina é o terceiro estado com o maior número de ameaças entre as mulheres (173.419 casos), sendo que tem a pior taxa a cada 100 mil habitantes (1,699.4).

A  defensora pública e coordenadora do OVM, Anne Teive Auras, explica que o crime de “ameaça” é enquadrado dentro da Lei Maria da Penha como um tipo de violência psicológica, sendo considerada a forma mais comum de violência contra a mulher.

— É uma coisa que vai torturando, aquela ameaça de morte, ameaça de que vai fazer mal aos seus dependentes. A violência psicológica é a forma mais sutil de violência, mas é a mais disseminada. Isso mostra o quanto a violência contra a mulher, de fato, obedece a um ciclo. Ela vai começar com uma ameaça, um xingamento muitas vezes, uma injúria, uma ofensa, mas tende a se agravar. Um cenário que vai, muitas vezes, se repetindo. O agressor se arrepende, pede desculpas, o relacionamento volta a ser o que era e, depois, às vezes, se agrava com um ato mais grave — explica.

De acordo com a psicóloga Andréia Isabel Giacomozzi, a principal característica da violência psicológica é o isolamento da vítima, assim como a autossabotagem e baixa autoestima. A especialista, que também é autora de um estudo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que analisou os casos de feminicídios nos últimos anos no Estado, complementa que a violência psicológica pode ser considerada a mais perigosa, por não deixar marcas.

— Ela não aparece, ela está internalizada ali naquela relação que as pessoas estão isoladas, que ninguém está vendo, não tem olho roxo, não tem a perna quebrada. Mas ela corrói totalmente a autoestima da vítima. Precisamos aprender a definir essas coisas desde criança. Eu vejo que a gente ensina as meninas desde pequena que a agressão é amor — pontua.

Casos são mais registrados aos finais de semana 

Para além da violência patrimonial, a peruana Kristel Aurora também passou a ser agredida fisicamente pelo marido. O primeiro caso aconteceu após uma viagem do casal para o Peru, quando o homem teve uma crise de ciúmes:

— Ele me dava nos peitos e na parte do ventre, justamente para eu não ser mãe. Ele falava: “vou te matar e você vai morrer sem ser mãe, que é o que tu quer”. Eu me dei conta que eu estava sendo completamente miserável. Eu era nada, era completamente nada, um lixo. Uma pessoa ensanguentada no chão. Não sei porque ele se assanhou assim comigo. Ele fez isso umas três, quatro vezes, de me botar no chão. Eu pegava um urso, que tenho desde os quatro anos, que meu pai me deu de presente, e colocava aqui [no ventre]. O tamanho dele cobria exatamente e o urso que recebia os chutes. Foi o que me salvou a vida.

De acordo com o painel do Observatório da Violência Contra Mulher em Santa Catarina (OVM), do total de 401.015 crimes registrados entre janeiro de 2020 a junho de 2025, 120.115 incluem alguma forma de agressão física contra a mulher. Entre os fatos registrados estão vias de fato (25.206), lesão corporal leve (13.827), lesão corporal grave ou gravíssima (222) , lesão corporal dolosa (80.905 — este último com dados de 2020 a 2024). A idade média das mulheres vítimas de violência doméstica no Estado é de 36 anos.

O Vale do Itajaí lidera os registros de casos de violência contra a mulher em Santa Catarina, com 103.740 registros em cinco anos. Na sequência está o Oeste catarinense com 84.903. A Grande Florianópolis aparece com 66.095, Norte com 61.837, Sul com 58.000 e Serra com 26.440. Além dos crimes de lesão corporal e vias de fatos, os dados do painel também englobam números de injúria, difamação, calúnia e ameaça.

A maioria dos casos de violência contra as mulheres, segundo a promotor de Justiça Chimelly Marcon, coordenadora do Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Neavid) do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), acontece durante os finais de semana.

— A nossa vida hoje é uma vida em que homens e mulheres, na sua maior parte do tempo, estão fora nos dias da semana e nos finais de semana acontece o convívio. Além disso, você tem no final de semana o maior consumo de bebida alcoólica e uso de drogas. Quando há um desentendimento, esses fatores elevam a gravidade de uma eventual agressão. Temos também os jogos de futebol, tem vida noturna… — salienta.

Com Kristel Aurora, os casos de violência normalmente aconteciam durante as folgas do trabalho dela. Além disso, o agressor, muitas vezes, batia na região da cabeça com o intuito de não deixar marcas. Depois, voltava arrependido pelo o que fez, com promessas de que iria mudar e implorando para que ela não o denunciasse.

— “Me desculpe, o que vai ser de mim e da minha filha? Eu sou um doente, me desculpa”. Ele se ajoelhava [e dizia], mas não curava — conta.

O padrão repetitivo de comportamento abusivo, frequentemente observado nos casos que envolvem a violência contra a mulher, é chamado de ciclo da violência. Conforme a psicóloga norte-americana Lenore Walker, há três fases. A primeira é o aumento da tensão, quando o agressor fica constantemente irritado. A segunda é o ato da violência. A terceira é o arrependimento e comportamento carinhoso, também conhecido como “lua de mel”.

— Fica um ciclo realmente doentio. Algumas mulheres vão demorar anos, décadas para conseguir fazer esse caminho de se libertar dessa relação abusiva. Para isso, a psicoterapia individual é fantástica, mas obviamente, não é todo mundo que tem essa condição. E por isso, temos os grupos reflexivos — pontua a psicóloga Andréia Isabel Giacomozzi, que é coordenadora do Projeto Espelhos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), voltado a mulheres vítimas de violência doméstica.

A advogada Kristel rompeu com o padrão repetitivo quando o proprietário da casa em que os dois moravam chamou a mulher para conversar. O locatório relatou que o companheiro dela havia chegado com várias mulheres na residência enquanto ela trabalhava. Foi aí que resolveu acabar com a situação: contou para o marido que eles haviam sido despejados e pediu para que ele fosse morar na casa de um amigo.

No entanto, quando a peruana disse que queria o divórcio, ele a ameaçou de morte. Só aceitou assinar os papéis quando ela deu dinheiro a ele. Depois disso, a advogada fez as malas e voltou para o Peru.

— Estava sendo completamente miserável. Eu era advogada lá no Peru, com mestrado na Espanha, e virei nada. Eu era completamente nada, um lixo, uma pessoa ensanguentada no chão. Não sei porque ele se ensaiou desse jeito comigo. Nunca entendi, nunca perguntei — relembra.

Kristel voltou para Florianópolis e denunciou o agressor um ano após o divórcio. Nesse período, chegou a ser perseguida pelo ex-marido e, com medo, pediu uma medida protetiva contra o homem, que, mesmo com as denúncias, nunca foi preso.

Quantidade de registros por ano em SC

  • 2020: 65.364
  • 2021: 71.760
  • 2022: 73.423
  • 2023: 79.100
  • 2024: 74.510
  • 2025 (até junho): 36.949

Em cinco anos, mais de 300 mulheres foram mortas em SC

Santa Catarina registrou, entre janeiro de 2020 e junho de 2025, 305 casos de feminicídios, segundo o painel da OVM. O crime, caracterizado pela morte de mulheres em razão de gênero, teve como maioria vítimas do sexo feminino entre 40 e 44 anos, quando considerado o período de janeiro de 2020 a dezembro de 2024.

Sob o manto do luto: as cicatrizes do feminicídio na vida das famílias de vítimas em SC

Ainda dentro do recorte de casos registrados entre janeiro de 2020 e dezembro de 2024, 197 dos autores foram detidos. Já 41 cometeram suicídio e, em 27 casos, o agressor segue foragido. Os números aponta, ainda, que em 67,5% dos casos o agressor não tinha boletim de ocorrência registrado por violência doméstica.

Além disso, do total registrado no período, 92 mulheres eram esposas do agressor, 51 companheiras e 45 ex-esposas. O meio utilizado para o feminicídio foi, majoritariamente, arma branca (125), seguido da arma de fogo (64) e agressões físicas (21).

Já neste ano, até julho, foram 28 feminicídios registrados. As vítimas tinham entre 25 e 29 anos. O padrão do meio utilizado segue o mesmo: arma branca (11), agressões físicas (4) e arma de fogo (3). Neste ano, em 87% dos casos o autor não tinha boletim de ocorrência registrado em seu desfavor por violência doméstica.

Em 13 casos, o agressor foi preso. Em quatro, ele está foragido e, em dois, ele cometeu suicídio. Em relação às vítimas, a maioria era namorada do criminoso (6). Cinco eram companheiras e quatro eram esposas.

Feminicídios por ano em SC

  • 2020: 57
  • 2021: 55
  • 2022: 57
  • 2023: 57
  • 2024: 51
  • 2025 (até julho): 28

“Precisamos trabalhar a prevenção para que no futuro não precisamos da punição” 

Apesar dos avanços conquistados pela Lei Maria da Penha, em 2006, e pela Lei do Feminicídio, em 2025, ainda é preciso avançar para implementar políticas públicas para prevenir que novos crimes aconteçam. O Agosto Lilás é voltado a campanhas de conscientização contra a violência doméstica e familiar no Brasil e faz referência a data de quando a Lei n° 11.340 foi sancionada.

De acordo com a advogada Tammy Fortunato, é necessário trabalhar a prevenção para que, no futuro, não seja necessário o Estado atuar na punição. Entre as estratégias sugeridas pela especialista, está a atuação de campanhas de prevenção nas escolas, já definida pela Lei Maria da Penha, e nas empresas privadas e públicas. Além disso, é importante ter ações de conscientização para formatar as denúncias e ampliar a rede de acolhimento para as vítimas.

— Um fator relevante que não está sendo levado em consideração, inclusive pelo estado de Santa Catarina, é a questão da casa da mulher brasileira, que seria uma casa de acolhimento para essas mulheres, porque muitas vezes elas denunciam o agressor e não têm para onde ir, seja sozinha, seja com os filhos — destaca a advogada.

Para a juíza Naiara Brancher, para enfrentar a violência doméstica é necessário que a atuação se dê em rede, com comprometimento dos gestores públicos, para que façam investimento de recursos financeiros. Além disso, para a magistrada, é importante que o Estado invista no monitoramento eletrônico e na forma como a mulher é alertada em caso de aproximação indevida do agressor. A medida já é lei no Brasil e foi sancionada no início deste ano pelo presidente Lula.

—  Não tenha dúvida que fatores estruturais dificultam muito o enfrentamento da violência de gênero. Nós precisamos olhar e enfrentar, dar a resposta para a violência, quando ela é materializada, mas nós precisamos atuar em reconhecer a violência em todas as formas que existe. Nós precisamos enfrentar, sim, o machismo estrutural que estrutura a nossa sociedade, que torna essa ideia de naturalização de violência contra mulher uma voz corrente na sociedade. Nós temos que enfrentar a sensação de impunidade e, para isso, nós precisamos ter medidas eficientes, com as medidas protetivas — finaliza.

*O nome foi alterado para preservar a identidade da vítima.

Conheça os tipos de violência e como pedir ajuda

 

Antonietas

Antonietas é um projeto da NSC que tem como objetivo dar visibilidade a força da mulher catarinense, independente da área de atuação, por meio de conteúdos multiplataforma, em todos os veículos do grupo. Saiba mais acessando o link.