A extinção do Imposto Sobre Serviços (ISS), prevista na Reforma Tributária aprovada no Congresso, marca o início de uma transformação profunda no pacto federativo brasileiro. O imposto, que por décadas sustentou as finanças de centenas de municípios, será gradualmente substituído pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), um tributo de arrecadação nacional compartilhado entre estados e municípios. Para os gestores locais, o recado é claro: o tempo de autonomia fiscal plena está com os dias contados, e a preparação para esse novo ciclo é urgente.
Felipe de Souza, advogado tributarista e integrante do Núcleo de Direito Público do escritório Alencar e Martinazzo, acompanha de perto o impacto da proposta. Com experiência em arrecadação e gestão fiscal municipal, ele vê na extinção do ISS um ponto de inflexão. “O ISS era a espinha dorsal das finanças de muitos municípios. Sua extinção muda completamente a lógica de arrecadação local e exige uma nova postura dos gestores públicos. Não é uma simples reforma, é uma ruptura”, pontua o profissional.
A proposta prevê que o novo IBS seja arrecadado no local do consumo, e não mais na origem da prestação de serviços. A medida, que busca simplificar o sistema e reduzir a guerra fiscal entre municípios, traz efeitos colaterais importantes. Cidades com economia baseada na prestação de serviços, na indústria exportadora ou no turismo podem perder receita relevante.
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Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com base em um cenário de crescimento moderado de 1,5% ao ano, 124 dos 295 municípios catarinenses podem perder arrecadação com a mudança. Já a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) alerta que 13 cidades de Santa Catarina devem ter crescimento abaixo da inflação durante o período de transição. Entre elas, municípios como Piratuba, Campos Novos, Itá, Água Doce e São Francisco do Sul.
“Esses municípios vão precisar se reinventar. Não só do ponto de vista contábil, mas administrativo, técnico, entre outros. O planejamento de médio e longo prazo precisa ser refeito desde já”, afirma Felipe.
A transição será longa, com dois períodos distintos. De 2026 a 2032, o ISS e o ICMS ainda convivem com o novo IBS. A partir daí, inicia-se uma redistribuição gradual das receitas que vai até 2078. Mesmo com um cronograma diluído, o advogado alerta que o tempo não deve ser interpretado como zona de conforto. “Esse prazo é para se preparar, e não para adiar decisões. Quem não estiver pronto em 2026 pode ficar para trás. É agora que prefeitos, secretários e câmaras precisam agir”, detalha o advogado.
Entre os desafios práticos, estão a reestruturação das leis orçamentárias, a revisão de contratos, a integração com o sistema nacional de arrecadação e o acompanhamento técnico da regulamentação do novo imposto, que será administrado por um Conselho Federativo.
“Esse conselho vai centralizar decisões que antes eram locais. A autonomia fiscal, que vinha sendo construída desde 1988, passa a depender de negociação e articulação em um novo ambiente político e técnico. Importante que os municípios se atentem para buscar a representação no mesmo”, frisa Felipe.
O advogado tributarista também enfatiza a importância da capacitação técnica. “As prefeituras precisam investir agora em formação de equipes. Tributaristas, contadores, procuradores e controladores internos terão papel-chave para garantir que o município entenda como funcionará o novo sistema, monitore os repasses, questione distorções e atue com estratégia.”
Importante destacar que, o Governo Federal promete um seguro arrecadatório para que nenhum município perca recursos durante a transição, um fundo de compensação que usaria até 3% da arrecadação do IBS. No entanto, esse mecanismo ainda depende de regulamentação.
“Não dá para os prefeitos se apoiarem apenas em promessas. A regulamentação será um campo de disputa, e quem estiver ausente pode sair perdendo. Além disso, os gestores terão que dialogar com seus legislativos, com os estados, com as associações municipalistas e com o próprio Congresso. Não basta entender a reforma. É preciso participar ativamente da sua construção”, reforça o especialista.
Apesar das incertezas, Felipe não é pessimista. “A reforma pode ser uma oportunidade. Pode corrigir distorções, reduzir burocracia e melhorar a justiça tributária. Mas isso só vai acontecer se os municípios estiverem preparados. Caso contrário, o que era para ser um avanço pode se tornar um retrocesso.”
No fim das contas, o que está em jogo não é apenas uma questão contábil. É o futuro da governança local, a autonomia para decidir onde aplicar o dinheiro público e a capacidade de responder às demandas da população com agilidade e eficiência.
“A arrecadação é o sangue da gestão pública. Se os municípios não participarem da construção deste controle sobre isso, perderão também a capacidade de planejar, executar e entregar resultados. A reforma está aprovada. Agora, o desafio é garantir que ela funcione sem sufocar quem mais precisa dela: o cidadão na ponta”, finaliza Felipe.
Por Mari Lidorio